segunda-feira, janeiro 19, 2009

História de um trevo num jardim de malmequeres

Recordo o tempo em que era trevo num jardim de malmequeres.
Recordo o ser diferente entre iguais, o destacar do meu verde por entre o branco e amarelo dos outros.
Recordo o querer ser malmequer quando crescesse, mas nunca desejar não ter nascido trevo, porque era trevo que me sentia.
Era um trevo diferente de todos os malmequeres. Era um trevo pequenino, por entre pétalas gigantes de malmequeres simples, mas vistosos quando comparados com um simples trevo.
Era um trevo que sonhava ser malmequer, até ao dia em que um apaixonado pegou num malmequer e lhe arrancou todas as pétalas na esperança de descobrir se o seu amor era correspondido.
Foi nesse dia que descobri a segurança de ser trevo, pequenino, no meio de um jardim de malmequeres.
Até que um dia, sem dar por isso, o jardim de malmequeres murchou, e eu vi o sol por entre as pétalas que desapareciam com o frio.
Nesse mesmo dia, uma menina viu que, no meio desse jardim de malmequeres, havia um trevo, pequenino, verde e sem a beleza das flores. Esse trevo era eu, que até àquele dia não tinha percebido a importância das minhas quatro folhas verdes.
Ainda hoje não a entendo, mas por alguma razão que não compreendo, a menina encontrou nas minhas folhas algo de muito importante.
Após colher-me, colocou-me no meio das páginas do seu livro mais pesado, para que secasse por entre as folhas de papel pintadas com letras, que formavam palavras e versos que aprendi a amar.
E foi assim, que de pequeno trevo invisível, passei a marcador de livro, e comecei a beber as palavras de poetas, romancistas e até enciclopédicos.
E foi assim que conheci Pessoa, Sá-Carneiro, Vinicius. E mais tarde conheci Roma e Grécia e Egipto. Viajei de livro em livro, e em cada uma das páginas que marcava conhecia um mundo novo, um mundo muito maior que o que conhecera no jardim de malmequeres.
Aprendi que há história, lendas, deuses.
E sequei. Tornei-me um amuleto da sorte que passeava por entre livros.
E aprendi que há muito mais no mundo que ser trevo num jardim de malmequeres.
Hoje continuo trevo, mas vivo num mundo em que há mais plantas que trevos e malmequeres.
Hoje sou trevo feliz por entre pinheiros e rosas, por entre margaridas e sobreiros. Por entre macieiras e malmequeres e sonho continuar trevo.
Hoje sou trevo, com a profissão de amuleto da sorte e marcador de livros, e o meu único sonho é conhecer o mundo, mostrar a todos os trevos que há um mundo inteiro a descobrir além dos jardins de malmequeres, rosas ou margaridas e depois repousar, no meio de um jardim de malmequeres, com as minhas quatro folhas verdes.


quarta-feira, janeiro 14, 2009

Metáforas de um cansaço

Olhei pela janela. Os monstros do dia voavam por entre chuvas de aço queimado, enquanto a luz fugia com medo da noite.
Seguiu-se o escuro, o silêncio, e o frio. Lá fora só reflexos de cá de dentro, tudo o resto era nada.
Cá dentro, um turbilhão de palavras e sons e imagens, uma bebedeira de sentidos que combatiam entre si.
Na língua o paladar da secura que não se extingue com água. Nos olhos uma sobreposição de transparências que se transformavam em nada. Nos ouvidos, cansados dos sons do tempo em que havia luz, um zumbido que era afinal silêncio. E nas mãos o macio do vácuo que escorria pelas paredes.
Era o cansaço. O cansaço tinha tomado conta da minha sala, do meu corpo, da minha alma. E eu dormia de olhos abertos, de ouvidos atentos, de paladar apurado e tacto sensível a todas as texturas.
Amanhã acordarei para novos sons e imagens e palavras, mas por agora repouso os sentidos num papel em branco, num teclado negro, numa mesa de prata.
Por agora descanso.



O Outro - Adriana Calcanhotto